quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Lágrimas com gosto de morango.

Chegou o dia. Frederico voltou pra casa as 9h da manhã daquele dia. Jin me acompanhou até o hospital pra que eu pudesse enfim tirar adequadamente aquela droga de bota. Nossa tarde estava programada. A família de Jin chegaria ao aeroporto 15:40. Ela arrumaria suas coisas a e minha mãe a levaria para casa. Eu iria junto e ficaríamos pra tomar um chá com os Fujikawa.
Iria.
Ficaríamos.
Claro que isso tudo nunca chegou a acontecer. Não naquele dia.
Eu continuava com aquele pressentimento ruim.
- Jin, eu não estou me sentindo muito bem...
- Que foi tchutchucão? Tá enjoada?
- Não... é só que... estou com uma sensação ruim.
- Deixa disso, sua boba.
Eu sorri, sem convicção. Nem eu mesma sabia o que estava acontecendo comigo.
Ninguém pode prever o futuro.
Aprendi isso do jeito mais difícil.
Uma das muitas coisas em comum que eu e Jin tínhamos era o lugar preferido no carro. Nós duas brigávamos para sentar no meio com uma vontade férrea. Claro que ela tinha vergonha de exigir o lugar no carro na frente da minha mãe,quando estava na minha casa. E eu tinha vergonha quando estava na casa dela. Então ficava empatado: Quando eu estava cno meu carro, eu sentava no meio. Quando era no carro da Jin, ela ocupava o lugar.
Naquele dia como em qualquer outro, ela me pediu baixinho pra sentar no meio, já sabendo que a resposta seria não. Porém, naquele dia eu resolvi deixar ela se sentar no meu lugar. Não sei porque diabos, mas eu deixei.
O pior erro que cometi na vida.
- Bom... Ele disse mais ou menos isso: - Ela começou a imitar uma voz de homem - "Cara, isso tá impossivel! Toda vez que eu me esforço pra lembrar de alguma coisa aparece uma... uma droga de interferencia! Tudo que eu consigo ver é um retardado que no caso sou eu correndo melecado de chocolate. Isso é patético!"
É. Essas palavras eram a cara do Fred. Eu ri. Fiquei conversando com Tereza até mais ou menos 09:30, quando ele acordou. Ela me levou até o quarto, e nos despedimos. Entrei tranquila, aquele nervosismo não me consumia mais.
- Marceleeeeeeee, namorada mais linda do Brasil! A que devo a honra?
Olha a palhaçada, Frederico - eu ri.
- Porque é que você ainda me chama de Frederico? Pode me chamar de Fred.
- Hm... não, eu não posso.
- E porque não?
- Porque você não é o Fred. Ainda não.
- Ah. - ele não gostou muito da minha resposta, era visível.
Mas eu tinha que dizer. Eu não podia chamar aquele estranho da mesma forma que chamava o meu Fred. Até tudo voltar ao normal, ele seria só o Frederico.
- Ei, tenho novidades pra você - falei.
- Iiiih, lá vem...
- Presta atenção caramba. Você lembra que ultimamente você tem dito pra Tereza que se vê correndo lambuzado de chocolate?
- S-s-sim! Não vai dizer que...
Fechei os olhos e falei o mais rápido que pude.
- Siméverdadenósfizemosisso.
- Quê? Fala direito pô, não entendi xongas do que você disse!
- Sim. É. Verdade. Nós. Fizemos. Isso. - repeti o mais devagar que pude.
- Tá brincando né?
- Não... se liga aqui, criança. - Tirei novamente a foto da bolsa e mostrei a ele.
- Ah. Meu. Deus!
Eu comecei a rir muito alto.
- Cala a boca, estranho! Foi você quem começou! - eu disse de brincadeira.
Ele riu junto comigo.
- O que foi que aconteceu?
- Eu posso... Ficar com a foto? - perguntou-me
- É claro. - respondi prontamente.
- Sabe Marcele... Logo eu estou voltando pra casa. Tenho certeza que minha mãe ia ficar feliz se você fosse lá. E eu também, claro. A gente podia sair sabe. Podíamos nos lambuzar de chocolate e sair correndo pela avenida mais movimentada da cidade, se você quiser. Eu só quero... Tornar isso fácil pra você.
Ao ouvir aquelas palavras, estremeci. Era o Fred. Era meu Fred. Ele tinha renascido das cinzas. Lágrimas de alegria se acumularam nos meus olhos, eu cheguei mais perto e dei um abraço nele.
- Obrigada. - sussurrei
Ficamos abraçados até que eu percebesse que era quase hora do almoço. Eu tinha que voltar pra casa. Despedi-me dele e ia saindo quando ele me chamou.
- Ei! Eu ainda sou seu namorado sabia? Não ganho um beijo?
Revirei os olhos, voltei e dei-lhe um beijo na testa.
- Fica bem, Frederico. Eu... amo você.
Voltei pra casa ainda meio em êxtase. Frederico finalmente tinha conseguido falar como gente, e não como um animal enfim. Cheguei e ninguém parecia muito desesperado com a minha ausência. Dei graças a Deus por isso. Minha mãe estava finalizando o almoço e Jin estava no quarto, grudada no computador como sempre. Ela era totalmente viciada. Quando me viu entrar correu até mim perguntando como tinha sido tudo. Eu contei a ela nos mínimos detalhes, até minha mãe chamar-nos para almoçar. Jin dormiria na minha casa mais dois dias até que a família dela voltasse para o Brasil e ela pudesse ir pro seu lar. Restavam também dois dias até que o Fred pudesse finalmente sair daquele hospital. A tarde passou rápido e a noite foi tranquila. Uma noite sem sonhos.
Acordei quase onze da manhã, e Jin não tinha se levantado ainda. Fui até a cozinha e minha mãe disse que tinha uma boa notícia.
-Tereza ligou - disse ela sorrindo - Ela disse que você vai poder se livrar da bota amanhã.
- Graças a Deus. - foi tudo que consegui responder.
Amanhã.
Amanhã eu tiraria a bota.
Amanhã Frederico voltaria pra casa.
Amanhã a família de Jin chegaria ao Brasil.
Amanhã.
O que eu não sabia é que apesar de todas as conquistas, glórias e felicidade amanhã seria o dia mais triste de toda a minha vida.
Amanhã.
Passei o resto daquele dia com um pressentimento ruim. Contei isso a Jin mas ela disse que era bobeira minha. "Calma aí tchutchucão! Ninguém vai jogar um bomba na nossa cabeça." Ela disse. Era incrível como com algumas palavras ela conseguia me acalmar e me fazer esquecer todas as mágoas. Ela era sem sombra de dúvida, a pessoa que eu mais amava na vida. Odiava admitir aquilo, mas talvez eu a amasse mais do que amava minha própria família. Era totalmente inacreditável como eu me sentia calma quando estava com ela. Ela me inspirava calma, tranquilidade. Tranquilidade; Jin. Jin serena, Jin tranquila. Me desculpe, querida Jin.
- O que mais... ele disse? - perguntei
- Que acha comida de hospital um saco, que se sente horrível com aquele curativo na cabeça, que quer parar de fazer raio-x todo dia, que quer ir embora pra casa, que é muito estranho ter 18 anos, que ele gostaria de se lembrar do seu... passado ou futuro, não sei.
- Hm.
- Má, tem uma coisa que você não sabe...
- Um coisa que eu... não sei? Mas o que... o que oi que aconteceu?
- Na festa de aniversário de 16 anos do Frederico... a gente ficou.
Respirei fundo.
- E o que mais? - perguntei dura
- Quando ele tinha essa idade, ele gostava de mim... - disse ela completamente sem jeito - ele tanto encheu meu saco que acabei ficando com ele, naquela maldita festa. Ele só saiu do meu pé por sua causa, Má.
- Não teve jeito. - ela continuou - foi só você entrar naquele colégio que ele não tirou mais os olhos de você. E não duvido nada que ele esteja apaixonado por você agora. Depois que ele te conheceu, nada mais pôde detê-lo. Ele lutou por você com unhas e dentes até te conquistar. Lembra disso?
Fiz que sim com a cabeça, fazendo beicinho e segurando as lágrimas.
- Agora é sua vez Má. É sua vez de lutar com unhas e dentes por ele.
- Eu vou lutar, Jin. Pode ter certeza.
Ela sorriu pra mim e fomos dormir. Já passava das 21h, o que era cedo. Mas Jin tinha feito uma viagem cansativa da China até minha casa, e devia estar cansadíssima. Resolvi respeitá-la e ir dormir mesmo sem sono.
Pensei muito naquela noite. Sobre tudo que Jin tinha dito. E se ele não se paixonasse por mim de novo?
Deitei na minha cama com a J. já ressonando tranquila ao meu lado. Não contei a ninguém, mas dormi pouco ou quase nada naquela noite. Eu sabia que não devia, não podia, mas eu tinha inveja da Jin. Ele se lembrava dela. Ele gostava dela. Ela podia conversar com ele sem parecer uma idiota. Chorei baixinho. Eu vinha chorando muito esses dias. Sequei as lágrimas no travesseiro e dormi, com mil e uma coisas na cabeça. E aí vieram os pesadelos.
Sonhei que eu e Fred estávamos subindo na roda gigante, exatamente como eu me lembrava. Quando já estávamos lá em cima ele ia me pedir em namoro quando de repente um raio caiu sobre nós, e nos lançou pra fora da roda. Eu e ele caímos no chão e passei um tempo desacordada. Quando me levantei estava caindo um temporal, e todo o parque estava em chamas. Eu me levantei e saí correndo, procurando o Frederico. Tropecei em algumas poças de lama que tinham se formado no chão. Lembro-me de sentir muito frio. Frio é pouco, eu estava quase congelando. Devia estar perto da hipotermia. Corri o mais rápido de pude e vi uma pessoa deitada no chão, também desacordada. Cheguei mais perto e era ele. Então eu pude ver: Fred estava morto. Eu não consegui raciocinar nem pensar em nada, quando apareceu um homem que eu nunca tinha visto. Ele não era totalmente humano, tinha os olhos totalmente brancos, estava ricamente vestido e não se molhava na chuva. Ele me deu uma moto, como a do dia do acidente e disse: “O passado deve ser deixado pra trás, garota! Corra para o futuro! Saia daqui, agora! Futuro... futuro...”. Então ele se afastou e eu subi na moto e dirigi sem direção naquela noite chuvousa. Não vi um buraco no chão, caí da moto e bati com a cabeça em uma árvore. A última coisa que me lembro antes de acordar é da voz do homem sussurando bem baixinho: “esqueça o passado! o passado... passou.”
cordei assustada, mas não gritei. Simplesmente arregalei os olhos e vire-me. Não era justo acordar a Jin por causa de um sonho bobo. Porém, não dormi no resto da noite. Eu tinha medo. Medo de ter que encarar novamente a razão da minha existência morta. Não suportaria isso duas vezes.
Quando o dia amanheceu eu me levantei e fui ao banheiro. Não fazia ideia de que horas eram. Escrevi dois bilhetes: deixei um colado na porta da minha mãe, e o outro preguei na tela do computador, pra que Jin visse. No bilhete eu avisava que ia até o hospital ver o Fred, e que não se preocupassem porque não demoraria, e estava com o celular. Arranquei umas fotos minhas e do Fred dos porta-retratos, enfiei tudo dentro da bolsa e chamei um táxi.
Eu sabia que o Frederico ia estar dormindo, afinal, como me certifiquei, eram 7h da manhã. Não importava. Eu ia esperar o quanto fosse preciso.
Cheguei ao hospital, e a moça da recepção já me conhecia. Eu era famosa no hospital pelos gritos que dava dormindo. Sorry, não tinha culpa.
Mas ela me deixou entrar, e disse que Tereza ia ficar feliz de me vez ali. Ah, Tereza... Eu tinha saudades dela. Agradeci a moça da recepção e fui andando até o refeitório, onde ela costumava ficar essa hora da manhã.
Assim que me viu um sorriso iluminou seu rosto. Ela tinha se tornado uma amiga querida, tanto minha quanto da minha mãe. Fui correndo o máximo que pude, ainda com aquela bota ortopédica para dar-lhe um abraço. Sentamo-nos em um das mesinhas e começamos a conversar.
- Marcele! - disse Tereza animada - Eu estava com saudades de você! Como está sua perna?
- Eu também estava com saudade. Minha perna tá... legal. Quer dizer, não é legal essa bota toda, mas pelo menos não dói, já é alguma coisa.
Ela riu.
- Tereza... Você deve saber o propósito da minha visita.
- É claro... Sinto informar que ele não acordou ainda, Marcele.
- Tudo bem, eu espero... Houve algum avanço?
- Ah, sim! Eu preciso conversar com você sobre isso! Ele vem reclamando que de vez em quando está parado e de repente aparecem... imagens na frente dele. Como flashes, ele não descreveu muito bem.
- E vocês não sabem o que é?
- Veja bem, Marcele. O caso do Frederico não é muito... comum, entende? Ele ainda é um mistério pros médicos. Não é todo dia que alguém aparece num hospital nesse estado. Não é todo dia que alguém tem a sorte de não morrer com uma pancada daquelas. Seu namorado é abençoado, minha querida.
Sorri pra ela, verdadeiramente feliz.
- E o que ele... vê?
- É sobre isso que precisamos conversar. Por algum acaso, alguma vez vocês... Hm... Vocês... Olha só, isso é bem estranho.
- Fala!
- Alguma vez vocês sairam correndo no meio de um parque cobertos de chocolate?
Eu não pude segurar. Comecei a rir. Meu riso se tornou gargalhada. Uau, quando ela disse aquilo, pareceu realmente estranho. Não é algo que se conta pras pessoas. Você não chega em casa e diz toda contente pra sua mãe: "olá mamãe, você não imagina o que eu fiz hoje... Sujei a cara toda de chocolate e saí correndo pelo parque!" Com certeza ela me levaria num psiquiatra.
- Pela risada, vejo que sim!- Ela riu junto comigo.
Eu não respondi. Abri a bolsa e mostrei uma foto a ela. Era uma das fotos que eu tinha arrancado dos porta-retratos. Mostrava duas criaturas meladas de chocolate e com um sorriso bobo na cara no meio de muitas árvores. Eu mesma tinha batido a foto, por isso ficou meio tosca. Mas não importava, o que importava era o momento, né?
Tereza começou a rir mais forte assim que viu a foto.
- Olha só, Marcele... Você precisa mostrar essa foto a ele. Diga que eu te contei que ele estava vendo essas coisas, e mostre. Conte tudo que vocês fizeram nesse dia e...
- O que exatamente ele disse? - cortei
Saí do carro meio desajeitada, andando feito um pato com aquela bota ortopédica no pé, cheguei perto dele e dei-lhe um abraço apertado.
- Caaaaaaio que saudade! – não era mentira. Eu estava mesmo com saudade do ruivinho implicante.
- Baixinhaaaaaaaaa! Não acredito que estou te vendo inteira. Quase morri de preocupação...
- Eu estou viva Caio. Eu e o Frederico. – Fiz questão de ressaltar.
- Aaah, certo...
- E aí, que acha de entrarmos?
- Hmmm, uma boa ideia.
Minha mãe, que tinha me trazido até em casa inventou uma convenção de vendedores de peças pra motos pra sair e nos deixar sozinhos. Dá pra acreditar? Ela sempre quis que eu desse mais moral pro Caio, que era o “genro perfeito” na opinião dela. Claro, ele era “ rico, bonito, jovem, pode te dar tudo que você quiser!” nas palavras da minha querida mãe. Ah, as mães... quem pode julgá-las?
Entramos em casa e sentamo-nos.
- Você ta bem mesmo, baixinha?
- To inteira né. Hmmmmmm, Caio... Eu queria te... Eu queria, sabe...! Queria te agradecer por ter pago aquela... cirurgia pra mim. Nem se eu fosse sua escrava até o resto da minha vida eu iria conseguir demonstrar o tamanho da minha gratidão. Muito obrigada mesmo.
- Esquece isso Má. Era meu dever te ajudar, já que se você não tivesse posto aquele pino... Enfim, foi tudo bem na cirurgia?
- Eu estava com um pouco de medo, mas fora isso foi tudo legal – ri de nervoso só de lembrar. Eu realmente odiava cirurgias. – minha perna já... melhorou. Mas obrigada de novo Caio. Você é o melhor amigo que alguém pode ter.
- É isso que eu sou pra você né? Um... amigo legal.
- Caio, por favor... já conversamos sobre isso milhões de vezes.
- Eu sei, desculpa. Eu tava só pensando alto.
- Ta desculpado. Mas enfim, você tem falado com a Jin?
- Com a... Jin? Não, porque eu estaria falando com a Jin? Eu nem ao menos vejo a Jin. Não há possibilidade de eu ter falado com a Jin nesses últimos meses. Na verdade eu nem lembrava mais de quem é Jin. Quem é Jin mesmo hein? Jin... Jin... Não, eu não sei quem é Jin. – ele sorriu. Já estava suando bicas.
O Caio realmente mentia muito mal. Ele era o pior mentiroso que já conheci na vida. Quando ele mentia começava a falar abobrinha, sorrir e suar. Ah e claro: dizer milhões de vezes a mesma coisa. Era típico.
- Tsc, tsc. O que é que você está me escondendo, Caio Passaglia?
- Escondendo? Escondendo o que? Porque eu esconderia alguma coisa de você? Eu nunca te escondo nada. E nunca esconderei também. Não há razão pra esconder. Por isso eu não escondo. E vou continuar não escondendo pro resto da vida. Eu sou um livro aberto, nunca escondi nada.
Eu sorri,e já tinha entendido tudo. Dei uma gargalhada o mais baixo que pude, antes de gritar:
- Shut up, ruivinho! Eu já saquei! – Fiz uma cara sapeca. – Jinnnnnnnnn?
Ele abaixou a cabeça, vencido por não conseguir guardar segredo.
- SEU IMBECIL, FALEI PRA VOCÊ NÃO FICAR REPETINDO AS COISAS! – gritou uma voz fininha e infantil de dentro do lavabo. Eu sabia muito bem de quem era.
- JIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIN!
Saí correndo o mais rápido que pude com aquela bendita bota cortando meus movimentos. Abri a porta do lavabo e lá estava a minha bonequinha. Não tenho palavras pra dizer o quanto fiquei feliz em vê-la. Eu precisava dela mais que nunca.
- Fala aí tchutchucããããão! – Ela costumava me chamar de tchutchucão, nunca entendi muito bem porque. Ela dizia que era porque eu parecia com o tchutchucão perto dela: enorme.
Dei-lhe um abraço apertado. Eu simplesmente não podia a creditar que ela estava ali.
- Me acerto com você depois, ruivinho de merda. – Disse ela emburrada.
Quem achava que Jin era uma menina delicada se enganava totalmente. Ela era toda pequena e fofa, mas era mais sacana e falava mais palavrão que 10 meninos juntos. Não que isso me incomodasse. Na maioria das vezes, ela usava palavrões pra exclamar, não pra xingar. Como “Puta que pariu, não acredito!”. E quando ela xingava era de brincadeira, todo mundo sabia disso. Ela realmente amava muito aquele “ruivinho de merda”.
- Não é culpa minha, ela me deixou nervoso ta, japoca estressada? – revidou ele rindo.
- Japoca é sua avó. Eu sou uma chinesoca sensual. – Ela mostrou a língua e depois piscou pra ele, gargalhando. Era impossível não gostar da Jin.
Aquele foi com certeza um dos dias mais lindos de toda a minha vida.
- Já vou avisando tchutchucão: trouxe minhas malas e minhas cuias. Enfiei tudo no seu guarda roupa e vou dormir aqui. Minha família tá toda do outro lado do mundo e voltei dois dias antes só pra ver você, portanto sinta-se feliz! - disse-me Jin.
Não respondi. Apenas dei um abraço demorado nela, pra mostrar o quanto eu estava feliz que aquilo fosse verdade, que ela estivesse mesmo ali.
Ficamos nós três o resto da tarde conversando e nos entupindo de refrigerante. Quando o Caio foi embora, fomos até o meu quarto conversar.
- Má, eu não queria mencionar isso, massss... hm... eu soube o que aconteceu com o Frederico.
Eu não respondi. Apenas olhei pra baixo.
- É... é isso.
- Eu... sinto muito, tchu.
- Não sinta. - eu disse controlando as lágrimas - ele está vivo. É o que importa.
- Antes de chegar aqui na sua casa... Eu fui até o hospital ver o Frederico. Foi de manhã, você ainda estava lá, mas como eu queria que minha presença fosse uma surpresa pra você, não fui te ver.
- Tudo bem, Jin - eu sorri - o que ele disse?
- Que ficou muito feliz em poder ver alguém de quem ele se lembre.
Silêncio.
- Desculpe por isso, Má. Eu tinha que dizer.
- Ok.
Silêncio novamente.
Passaram-se 12 dias até que eu pudesse ir de novo pra casa. Finalmente tirei aquele gesso que não me deixava andar e coloquei uma bota ortopédica. Uma pena que as minhas amigas não tivessem tido a chance de assinar no gesso. Ah, as minhas amigas... Elas provavelmente não deveriam fazer ideia do que estava acontecendo. Estávamos de férias e todas estavam viajando. Não tive interesse em ligar pra nenhuma pra contar as “novidades”. Elas saberiam quando chegassem.
Porém dentre todas uma em especial me fazia falta. A minha melhor amiga, minha chinesinha favorita, meu neném, minha boneca, minha fofa, aquela com que eu podia contar sempre. O nome completo da figura é Jin Ma Shuyuan Fujikawa, o que é bem estranho porque chineses não costumam ter nomes tão longos. Ela chegou no Brasil quando ainda não era nem nascida, na barriga da mãe. Particularmente ela é a menina mais linda que eu já vi. Se parece mesmo uma boneca. Tem a pele branquinha como leite, olhos pequenos, puxadinhos, e bem pretos. Tudo na Jin é pequeno: olhos, nariz, boca, rosto, estatura... Eu nunca vi um cabelo tão lindo quanto o dela. Era um pouco longo, e tão liso que nenhum acessório parava. Ela era linda, minha bonequinha. Minha melhor amiga. Minha.
A Jin estava na China visitando os avós, e só voltaria dali a alguns dias, eu não sabia quantos. A conheci assim que conheci o Fred, quando mudei de escola.
O Fred e ela se conheciam desde a quinta série. Não que fossem melhores amigos. Eles se falavam, mas a Jin nunca deu muita moral pra ele. Eu não sabia muito sobre isso, nunca me interessei, e continuo não me interessando. O que importava é que eu estava com muita saudade dela.
Mas esse não era meu problema no momento. O problema agora era um ser grudento parado na porta da minha casa antes mesmo que eu tivesse chegado a entrar nela.
O garoto pelo qual a minha melhor amiga daria a vida. O garoto para o qual eu daria a vida pra que largasse do meu pé. Jin era perdidamente apaixonada por ele. Eu só queria que ele sumisse.
Era ele mesmo, o “chiclete”, como eu e Jin gostávamos de chamá-lo. A pessoa à qual eu deveria ser eternamente grata. Eu sabia que o “pequeno favor” que ele tinha me feito seria cobrado. E teria que ser pago a base de amor. Um amor que eu simplesmente não sentia amor por aquela pessoa.
Ele mesmo: meu grande amigo Caio Almeida Passaglia, o cara que tinha me doado por livre e espontânea vontade “míseros” cinco mil reais pra que eu colocasse um maldito pino na perna.
Eu era sim grata a ele, mas não passava disso. Caio era uma pessoa de quem eu gostava, era meu amigo. Era até divertido ficar escutando as babaquices dele depois da aula. Mas o sentimento mais próximo de amor que eu tinha por ele era pena. Pena, porque o amor dele nunca seria correspondido por mim. Eu já havia dito isso a ele centenas de vezes, mas não parecia surtir muito efeito. Caio continuava no meu pé, recitando poemas e tudo mais. Ele era legal quando não tentava me cantar. As cantadas dele eram deprimentes.
Enfim, lá estava ele em toda sua pomposidade real parado na frente do meu portão. Eu tive sorte: não haviam flores em suas mãos. Bom, pensei, ele deve ter vindo para uma visita pacífica.
OH MEU DEUS! OH MEU DEUS, OH MEU DEUS!
Ele tinha mesmo...? ELE REPETIU! ELE REPETIU EXATAMENTE!
Ele repetiu as mesmas palavras que tinha dito quando fez o pedido de namoro, no alto da roda gigante. Eu me lembrei como se realmente estivéssemos lá, os arrepios vieram todos de novo. Como era possível que...?
Não consegui conter meu espanto. Não respondi nada. Apenas abri a boca e arregalei os olhos pra ele como se tivesse acabado de achar a cura pra desnutrição na África. Obviamente ele se assustou.
- Que foi Marcele?
- O que é que você disse?
- Que sinto que você era importante...
- Não! Depois disso!
- Eu não disse nada depois disso!
- VOCÊ DISSE! Disse exatamente isso: ”Eu não entendo o que acontece, mas quando estou com você sinto uma coisa crescendo dentro de mim, me dá vontade de gritar.”
- Você está louca? Eu nunca diria uma coisa tão... ah, não sei. Mas não me lembro de ter dito nada parecido.
ELE TINHA DITO! Eu tinha certeza. Resolvi não insistir no assunto e confirmar que realmente ele não tinha dito nada. Mas eu sabia: O inconsciente dele se lembrou. De algum jeito alguma coisa no cérebro dele o fez dizer aquilo. Mesmo que ele não se lembrasse nem ao menos de ter dito.
- Esquece essa história Marcele. Tenho certeza que não disse nada.
- É... acho que esse hospital está me deixando louca – ri comigo mesma.
- Certo... Me responde uma coisa... o que nós... éramos?
- Bom... estávamos comemorando um ano de namoro quando... você sabe... o acidente.
Agora era a vez dele rir. E riu muito.
- Você era minha... Namorada? CARA, EU TINHA UMA NAMORADA? VOCÊ ERA MINHA NAMORADA? EU IA FAZER UM ANO DE NAMORO?
- Hm... sim...?
- Cara, porque é que eu me esqueci? Aaaaaaaaaaaaaaaah, acidente maldito, vida bandida!
Eu ri com ele. Ele costumava dizer “vida bandida” cada vez que algo dava errado. Eu sempre caía na risada. Fred era perfeito. Sempre foi educado, e engraçado. Ele era um gentleman quando era preciso, mas adorava sacanagem e humor negro. Se ele fosse certinho demais, ia ser um chato. Eu o amava tanto, porque sempre podia rir das piadas de mau gosto dele, e dos palavrões que ele raramente falava.
- Eu não acredito! Eu tinha uma vida linda, uma namorada linda, amigos lindos! Por quêêê? – Ele falava brincando. Brigava com Deus, e ma fazia ficar roxa de rir. Éramos como sempre fomos.
Ficamos papeando mais um tempo, e ele me perguntava sobre o que fazíamos e como ele era, como ele agia... Eu respondia e ele se animava cada vez mais. Frederico, Frederico... Até que ele não era tão ruim. Mas é claro que eu preferia meu Fred.

Decisões e conclusões.

Tereza entrou no meu quarto um pouco apreensiva. Eu estava imersa nos meus pensamentos então me assustei.
- Minha querida... Eu hm... Não devia permitir isso, mas... Alguém aí fora que falar com você. – Ela piscou o olho pra mim e fez uma cara compadecida.
Eu sabia muito bem quem queria me ver. Não era necessário perguntar. Então apenas consenti com a cabeça. Também queria muito vê-lo.
Tereza se retirou cochichando um “seja forte” e deixou o extinto homem da minha vida entrar no quarto. Ele estava andando, e não precisava de uma droga de cadeira de rodas como eu. Mas isso não importava. Eu sabia que ele estava assustado com a revelação, por isso tinha me tratado daquela forma. Se ele me xingasse dos nomes mais feios do mundo, ainda assim seria perdoado. Só eu sabia o quanto amava esse adolescente cabeça-dura e boca-suja.
Não que ele fosse cabeça-dura ou boca-suja antes do acidente. Ele era o garoto mais educado que já conheci na vida. Do tipo que te dá flores e abre a porta do carro. É claro que quando o conheci ele já tinha quase 18. Agora ele tinha acabado de fazer 16. Eu não imaginava que ele fosse tão rebelde aos 16 anos. Era quase inacreditável. Mas ele ia voltar a ser o que era antes, eu tinha certeza e fé. Meu Fred ia voltar pra mim, ah se ia.
Ele entrou no quarto mexendo no cabelo, como fazia sempre antes do acidente. Ver aquele gesto me deu um pouco de ânimo. Só fortaleceu a ideia de que em algum lugar dentro daquela pessoa estranha na minha frente estava alguém que eu amava. Ele se aproximou um pouco vermelho e sentou-se ao lado da cama onde eu estava sentada.
- E então, Marcele...?
- E então?
- Eu quero dizer, erhm... me deeeee...
- hm?
- Desculpe! É isso, foi mal. É que não foi nada fácil pra mim, e não é até hoje. Saber que eu vivi e não lembro da minha própria... vida! Ninguém nunca vai saber como é... – Eu vi seus olhos se enchendo de lágrimas, e ele rapidamente as limpando com palma da mão.
Eu sabia que se o meu Fred estivesse ali ele choraria. O Fred não tinha vergonha de chorar. Mas o Frederico matava o Fred a todo instante. Ele o reprimia e não deixava o seu passado respirar. Era por isso que ele não estava lembrando de nada.
- Não Frederico, você não precisa pedir desculpas. E sim, eu sei muito bem como é.
Ele olhou-me desconfiado e disse:
- Hm, até hoje eu não sei porque você. Porque minha mãe não me disse nada, os médicos não disseram nada... Não entendo porque eles queriam que você dissesse. Eu não... Conheço você. Não sei o que você era na minha vida.
- Olha Frederico...
- Eu sei que você era importante pra mim. Eu sinto isso, de algum jeito. ”Eu não entendo o que acontece, mas quando estou com você sinto uma coisa crescendo dentro de mim, me dá vontade de gritar.”